O samba de roda, os ternos e as festas de batizado começavam dentro de casa, na brincadeira de criança com as bonecas. "Eu colocava umas roupinhas de baiana nelas e ficava sonhando, cantando e dançando com elas. Todas as celebrações onde tinha samba eu fazia com elas, até enterro, com umas caixinhas de fósforo", conta, rindo Dalva Damiana de Freitas, a Dona Dalva. Aos 93 anos, é uma das mais emblemáticas mestras sambadeiras, tendo sido consagrada Doutora Honoris Causa pela UFRB em 2012. "Minha vida é muito calendário, é história, mas me sinto feliz, dei conta do recado", diz ela.
Nascida em Cachoeira, cidade onde sempre viveu, teve uma infância sofrida, mas que recebia lufadas de felicidade nos momentos em que ia ao encontro de sua avó Maria Tereza de Jeus, lavadeira, que passava os dias cantando na beira do rio ("ô irerê, ô irará/ pancada de beira-mar/ balança que pesa ouro/ não pode pesar metal"). Ajudava a avó lavando peças pequenas, como meias e toalhas de prato, enquanto ia aprendendo aquelas cantigas. "Voltava toda alegrezinha pra casa", recorda, sorrindo sempre.
A ânsia de ajudar os pais a criar os irmãos a levou, ainda moça, a trabalhar como charuteira. Foi na fábrica Suerdieck que começou a arregimentar aquele que seria o pioneiro conjunto de samba de roda da Bahia, que ousou ultrapassar uma fronteira estabelecida nas tradições religiosas do catolicismo popular. "Fui eu quem levei o samba de roda para as ruas", conta, lembrando que, até então, as celebrações ocorriam apenas nos carurus de São Cosme e Damião e Santa Bárbara e nos festejos de Santo Antônio e São Roque. Homenageando a fábrica de charutos onde tudo começou, o Samba de Roda Suerdieck foi fundado em 1958 e segue em atividade até os dias atuais.
A transgressão veio acompanhada, porém, de alguma resistência e muito preconceito. "O pessoal olhava torto, diziam que o que eu fazia era festa de ponta de rua, de charuteira", conta. Nos anos 70, o apoio oficial da Bahiatursa na organização de festejos de São João na cidade fez com que as coisas melhorassem e o Samba de Roda Suerdieck ganhasse projeção regional e nacional, chegando a fazer apresentações com nomes como Luiz Gonzaga, Dominguinhos e Beth Carvalho. A partir dos anos 90, Dona Dalva e seu grupo passaram a ser protagonistas em registros audiovisuais e CDs, como o "Samba de Roda Suerdieck" (2001) e o "Samba de Dalva" (2004).
Além do Grupo Samba de Roda Suerdieck, Dona Dalva criou e mantém o Terno de Reis Esperança da Paz, o Terno das Baianas do Acarajé, o Terno do Batizado de Liberou, a Quadrilha da Terceira Idade e o Samba de Roda Mirim Flor do Dia, além de integrar a Irmandade da Boa Morte. A mestra sambadeira, que também é compositora, é uma das principais responsáveis pelo processo de salvaguarda e difusão do samba de roda do Recôncavo Baiano, tendo contribuído de forma definitiva para o seu reconhecimento como Patrimônio Imaterial do Brasil (IPHAN, 2004) e da Humanidade (UNESCO, 2005).
Seguindo os passos do miudinho da mãe, a mestra Ana Olga de Freitas també atua com afinco na preservação da tradição do samba de roda para as futuras gerações - sua filha Any Manuela, que também é sambadeira e administra a Casa do Samba de Roda de Dona Dalva, em Cachoeira, é prova disso. Mestra Ana conta que o Samba de Roda Mirim Flor do Dia, fundado em 1980, com pouco menos de um mês de existência, conseguiu organizar um conjunto de crianças para participar da Festa da Boa Morte daquele ano. "Tem que pôr as crianças na rua para o samba não se acabar", defende ela.
A mestra sambadeira fala com orgulho sobre a mãe ("é uma mulher que enfrentou a tudo e a todos para botar o samba na rua") e diz que o exemplo materno a levou a trilhar o mesmo caminho, inclusive compondo. "Não tinha por onde correr", diz ela. "Já nasci sambando!".
Neste episódio de "Samba da Bahia, todo mundo canta", mãe e filha cantam "Ô lê ô", "Pó de arroz", "Dá no nego", "Navio de guerra" e "Alheio". Todos, à exceção de "Navio de Guerra" - que tem autoria de Dona Ana Olga -, são sambas tradicionais do Recôncavo Baiano.
Reprodução : Dendê na Roda
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